O governo Dilma vem enfrentando uma
onda de greves dos servidores público federais que coloca em questão as
políticas fiscal e monetária herdadas do governo Fernando Henrique
Cardoso. Estas foram suavizadas durante o governo Lula, nos momentos
mais agudos de crise, como em 2010, mas nunca efetivamente abandonadas.
Tais políticas se baseiam na restrição à demanda através de corte de
gastos públicos e geração de expressivos superávits primários,
integralmente absorvidos por altas despesas em juros como estratégia de
controle inflacionário. As despesas com juros são significativamente
maiores que o superávit primário e por isto a dívida bruta do governo
federal tem se elevado, em particular a interna, apesar da queda
drástica da dívida pública externa, regulada pelos juros
internacionais, hoje negativos em termos reais.
A greve envolve aproximadamente metade
dos servidores ativos civis do governo federal e seu caso mais notório
e expressivo é a dos docentes que alcançou 95% das universidades
federais do país e também maioria esmagadora dos colégios de aplicação,
obtendo amplo apoio dos estudantes e atingindo mais de um milhão de
alunos apenas no ensino superior. Apesar desses drásticos efeitos
sociais, o governo apenas apresentou sua primeira proposta aos
sindicatos 56 dias após a deflagração da greve. Ofereceu aumentos a
serem pagos em três parcelas até 2015 que traziam um impacto
orçamentário de R$ 3,9 bilhões e partiam dos salários de 2010, último
ano de reajuste dos docentes. Posteriormente, o governo ofereceu R$ 4,2
bilhões, muito distantes dos R$ 10 bilhões solicitado pelo ANDES,
principal entidade sindical docente do ensino superior. O governo
tampouco atendeu suficientemente às exigências para a reestruturação da
carreira e, inclusive, a degradou: vinculou a promoção a critérios de
produtividade determinados externamente pelo MEC, violando a autonomia
universitária que se pretende resgatar, e ao aumento do tempo de sala
de aula para 12 horas, em afronta à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB).
Em sua segunda proposta, o governo remeteu a definição dos parâmetros
de produtividade a grupo de trabalho a ser constituído pelo MEC,
condicionando a participação nele das entidades sindicais à aceitação
dos seus termos.
Os termos do processo de negociação com
os movimentos sociais incluem o recurso a certa dose de violência por
parte do governo – corte de ponto sem que a justiça decretasse a
ilegalidade da greve, ameaça de improbidade administrativa aos
dirigentes que não o imponham, decreto de substituição de servidores
federais por estaduais etc. – e evidencia o desinteresse em considerar
suas reivindicações. O discurso governamental afirma que as demandas
dos servidores públicos em seu conjunto seriam inviáveis, pois somariam
R$ 93 bilhões, ou aproximadamente 2% do PIB.
Como avaliar esta ação do governo
Dilma? Estaria defendendo o Estado brasileiro de um movimento
corporativo, com interesses particularistas em confronto com as
necessidades das grandes maiorias da sociedade brasileira?
Justificar-se-ia pela defesa dos investimentos contra pressões
salariais que ameaçariam liquidá-los?
Trabalho recente publicado no IPEA Comunicado 110: Ocupação no setor público brasileiro: tendências recentes e questões em aberto] mostra
que o governo Fernando Henrique Cardoso produziu uma enorme devastação
do emprego no setor público, reduzindo-o e precarizando-o: em 1993
havia 680 mil servidores ativos na administração federal e em 2002
apenas 550 mil. A expansão dos concursos públicos a partir de 2005 não
permitiu sequer restabelecer os níveis de 1992: em 2010 estes
servidores somavam aproximadamente 630 mil. Tampouco o aumento do ritmo
de contratação permitiu manter a exígua parcela que representavam no
conjunto do emprego da população brasileira: em 2003 correspondiam a
apenas 2,5% dos trabalhadores e em 2010 a 2,2%. A empresa privada, onde
é notavelmente pior a remuneração, aumentou no período sua participação
de 64,4% a 69,6% do total de empregos. A massa salarial na
administração pública federal permaneceu modesta e constante: em 2002
representou 5% do PIB, em 2010 apenas 4%, correspondendo a 20% da
arrecadação do governo federal neste intervalo. Isto apesar da elevação
qualidade do emprego – os estatutários saltaram de 78% dos servidores
em 1995 a 83,5% em 2002 e 90% em 2010 – e do aumento do nível de
escolaridade médio do servidor federal.
Estes indicadores mostram que é muito
difícil imaginar uma pressão desestabilizadora nas contas públicas
oriundas destes trabalhadores e seu movimento sindical. Os 2% do PIB
que hipoteticamente reivindicam sequer produzirão déficit público
primário, mesmo se ignorarmos o multiplicador keynesiano que alimenta a
expansão da economia real e da arrecadação pública.
A impossibilidade de negociação está
ancorada nas políticas públicas adotadas pelo governo Dilma Rousseff e
em particular em sua equivocada estratégia anti-inflacionária, que
sacrifica a expansão da demanda, o crescimento econômico e mantém a
financeirização da economia. A recente redução na taxa de juros real
praticada não a situou abaixo das taxas de crescimento econômico: a
dívida pública federal saltou de 51,3% a 54,1% entre janeiro de 2011 e
maio de 2012; em março de 2012 registrou-se recorde mensal no pagamento
de juros, R$ 18 bilhões, e em maio de 2012 pagou-se R$ 230 bilhões,
somados os 12 meses anteriores, mais que os 200 bilhões em janeiro de
2011, quando o novo governo assumiu.
Em 2011, juros e amortizações
representavam 45,7% do orçamento executado do governo federal, enquanto
saúde respondia por 5%, educação por 3%, ciência e tecnologia por 0,3%
e cultura por 0,04%. Apesar da promessa da Presidenta em baixar os
juros a 2% em nível real é bastante provável que a taxa de juros possa
sofrer futura elevação quando retomar-se o crescimento da economia, em
função do enfoque anti-cíclico que maneja o governo. Foi o que o
governo fez no primeiro ano para desacelerar o crescimento da economia.
A pressão colossal que os juros e
amortizações exercem sobre o orçamento governamental impede que o
Estado atue como gerador de emprego, massa salarial e investimento. O
resultado é a mediocridade de nossas taxas médias de crescimento do PIB
e de investimento, o avanço da desindustrialização e manutenção
indefinida do programa de renda mínimo como principal fonte de política
social, negligenciando a educação e o emprego como instrumentos
sustentáveis e estruturais de redução de desigualdade, pois exigem
investimentos muito mais significativos para desempenharem este papel.
A política anti-inflacionária
governamental é equivocada e inadequada, em particular para a
conjuntura internacional em que vivemos. Desde 1994, a economia mundial
vivencia um período de expansão acelerado que se expressa em novas
ondas de inovação tecnológica que barateiam e desvalorizam fortemente
as mercadorias. São exatamente os países capazes de alavancá-las os que
exibem taxas de inflação mais baixas. O Brasil exibe desde 1994 taxas
de inflação muito superiores que as da China que investiu entre 30% a
50% do PIB e reduziu drasticamente sua pobreza, ou os países da Europa
Ocidental e os Estados Unidos. Nossa inflação, aliás, sempre foi
historicamente muito superior a dos países que registram os maiores
mercados internos do mundo e orientam seus recursos para atendê-los.
Não faz nenhum sentido vincular a política inflacionária a um enfoque
estagnacionista como o de corte de demanda, em particular, do setor
público.
A legitimidade do governo Dilma para
combater eventuais desvios corporativos do sindicalismo do setor
público torna-se profundamente comprometida com a orientação de grande
parte dos recursos federais para atender aos especuladores do Estado
brasileiro. Perde força a capacidade de impor constrangimentos aos
servidores públicos a partir do discurso de que suas demandas salariais
sacrificariam investimentos públicos e sociais. A elevação de 133% do
soldo presidencial e dos ministros de Estado, praticada neste governo,
e a informação de que a Ministra do Planejamento e Orçamento Miriam
Belchior aufere proventos de mais de R$ 40 mil mensais não respaldam o
discurso de austeridade junto ao funcionalismo público. Entre os
servidores públicos federais, o salário médio é de 11 salários mínimos
para homens e 12 para mulheres, mas há forte dispersão entre as
categorias e os docentes estão entre as piores remuneradas. A proposta
do governo aumenta ainda mais as disparidades no interior da carreira
no ensino superior conferindo elevação salarial desproporcional em
favor dos professores titulares, onde estão apenas 5% dos docentes.
A universidade brasileira necessita de
profunda revisão. Não é possível que nos acomodemos com o fato de 75%
das matriculas do ensino superior estar nas universidades privadas,
relação das mais desiguais no mundo. Este índice que era favorável às
universidades públicas, inverteu-se nos governos militares e no governo
FHC saltou de 58% para 69%. No governo Lula não se conseguiu impedir
sua progressão, apesar de iniciativas como a abertura de novas
universidades públicas ou contratação de professores estatutários por
concurso público. Continuamos, entretanto, a financiar pesadamente as
universidades privadas via Prouni e outras iniciativas. Dilma acaba de
assinar decreto onde cria o Programa de Estímulo à Reestruturação e ao
Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior (Proies). Este
iniciativa cancela a dívida de R$ 17 bilhões das universidades privadas
com o Governo Federal em troca de bolsas que ofereçam aos seus alunos
nos próximos 15 anos. Trata-se de um apoio muito mais generoso que o
oferecido às universidades públicas e que coloca em discussão o tipo de
universidade na qual queremos formar nossos alunos. Qual é a proposta
de ensino superior brasileiro deste governo? A de formar alunos a
partir da articulação entre ensino e pesquisa para a cidadania e
desenvolver um sistema de ciência e inovação capaz de projetar o Brasil
como um país soberano no cenário internacional; ou a de formá-los para
um mercado de trabalho com baixas exigências tecnológicas, em
instituições que priorizem o baixo custo do investimento e a
dissociação do ensino e pesquisa, dentro do contexto da dependência
tecnológica internacional?
A reestruturação do ensino superior
exige também o resgate da autonomia universitária e a redefinição do
conceito de produtividade. O achatamento salarial dos docentes levou a
que se buscasse complementação salarial mediante a competição por
bolsas em agências de fomento à pesquisa. Estas impõem critérios de
pontuação elitizados e aristocráticos que desviam o esforço da produção
universitária da cidadania, das grandes massas e da extensão,
favorecendo corporativismo acadêmico e um público extremamente
restrito. Escrever um artigo a cada 3 anos num periódico estrangeiro em
língua estrangeira, muitas vezes só acessível ao leitor mediante
pagamento na internet, pode ser decisivo para uma carreira
universitária se este for classificado como A-1, mas orientar
monografias de graduação, participar de debates em TVs e rádios
comunitárias, publicar com regularidade em revistas ou portais de amplo
acesso não têm peso nenhum para as agências reguladoras da
produtividade. Estranha equação. Talvez seja ela que explique o fato de
a maior universidade federal do país não ter uma rede de TV ou de rádio
para seus cientistas se dirigirem à população, ou o fato de alguns de
seus institutos terem abolido a monografia de graduação, liberando seus
docentes para dedicarem-se a orientações de dissertações, teses e
artigos que lhes dão pontos de produtividade. Trata-se de um forte
processo de privatização do ensino superior público que reflete de
certa forma o controle que as grandes oligarquias do país ainda exercem
sobre o Estado brasileiro.
A eleição do PT para o comando do
Estado brasileiro a partir de 2002 representa uma importante inflexão
na história política do país. Nele estão depositadas as esperanças da
população brasileira para que se afirme de maneira substantiva e
sustentável a condição republicana de nosso Estado. Qualquer projeto de
mudança da realidade brasileira em direção à igualdade e promoção dos
nossos povos dependerá ainda por vários anos, muito provavelmente, de
sua liderança. Mas para exercê-la este Partido deve abdicar da Guerra
Fria que trava com as oligarquias brasileiras e confrontar de maneira
mais contundente os seus interesses. Como sabemos, a Guerra Fria
significou uma confrontação limitada dentro de um projeto de
coexistência pacífica entre a direita e a esquerda internacional, que
se esgotou depois de anos. Terminou com a vitória das forças do grande
capital que, por sua sede de expansão ilimitada, nunca abandonou o
projeto de desalojar seu oponente.
Desprivatizar o Estado brasileiro e
enfrentar o tema da desigualdade exige ir muito além de um programa de
renda mínima, ainda que este tenha relevância e um papel importante a
cumprir. Os dados sobre a redução da desigualdade no país são tímidos
depois de 10 anos desta política. Estes devem ainda ser confrontados
com a notória insuficiência das estatísticas para mapear os ingressos
de origem financeira e rendas de propriedade, que na PNAD respondem por
apenas 3% do total declarado. Informações recentes que apontam a
presença de 1/3 do PIB brasileiro em paraísos fiscais e os brasileiros
como os seus 4º maiores investidores evidenciam a necessidade de
cautela no tratamento deste tema.
O PT e seus principais representantes
deverão escolher seu caminho nesta década: ou derrubam o muro da Guerra
Fria que preserva as oligarquias e impede o estabelecimento de
políticas que ultrapassem o combate à extrema pobreza e atendem às
demandas de formação massiva de um proletariado qualificado e com
ingresso familiar per capita ao menos proporcional ao salário mínimo
necessário do Dieese – situação por debaixo da qual se encontravam
aproximadamente 60% da população brasileira em 2009 –; ou arriscam-se a
esgotar sua liderança, abrindo o espaço para na pior das hipóteses, num
momento de crise e desgaste, a direita reassumir seu lugar na direção
do Estado brasileiro.
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