Os movimentos sociais do campo, que se
reuniram nesta semana no Encontro Unitário dos Trabalhadores,
Trabalhadoras e Povos do Campo, das Águas e das Florestas, em Brasília,
lançaram uma declaração conjunta que representa uma demonstração de
articulação e unidade política dos camponeses, pequenos agricultores,
sem-terra, indígenas e quilombolas, além de ambientalistas, defensores
dos direitos humanos e estudantes que participaram dessa construção.
O encontro é uma resposta aos desafios
do nosso país para superar a desigualdade na distribuição da terra, que
se mantém inalterada desde a década de 20, mas com riscos econômicos,
sociais, culturais e ambientais em consequência da especialização
primária da economia.
O projeto capitalista em curso no
Brasil, representado no campo pelo agronegócio, tem como objetivo a
acumulação de capital no setor primário, servindo aos interesses e
domínio do capital estrangeiro no campo por meio das transnacionais.
A ofensiva desse projeto causa o
esmagamento e a desterritorialização dos trabalhadores e trabalhadoras
dos povos do campo, das águas e das florestas. Além disso, impede a
realização da reforma agrária, a demarcação e reconhecimento de
territórios indígenas e quilombolas.
Por outro lado, tem impactos sociais e
ambientais negativos, com o aumento da violência, a violação dos
territórios dos pescadores e povos da floresta, a fragilização da
agricultura familiar e camponesa, a sujeição dos trabalhadores e
consumidores a alimentos contaminados e ao convívio com a degradação
ambiental.
O encontro demonstra que é indispensável
um projeto de vida e trabalho para a produção de alimentos saudáveis em
escala suficiente para atender as necessidades da sociedade, que
respeite a natureza e gere dignidade no campo.
Para isso, é necessário realizar a
Reforma Agrária, defender a nossa soberania territorial, garantir a a
soberania alimentar, desenvolver a agroecologia, com a centralidade da
agricultura familiar e camponesa e de formas tradicionais de produção e
educação do campo, indígena e quilombola como ferramentas estratégicas
para a emancipação.
Abaixo, leia a declaração final do
Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e Povos do Campo, das
Águas e das Florestas.
Por Terra, Território e Dignidade!
Após séculos de opressão e resistência,
“as massas camponesas oprimidas e exploradas”, numa demonstração de
capacidade de articulação, unidade política e construção de uma proposta
nacional, se reuniram no “I Congresso Nacional dos Lavradores e
Trabalhadores Agrícolas sobre o caráter da reforma agrária”, no ano de
1961, em Belo Horizonte. Já nesse I Congresso os povos do campo,
assumindo um papel de sujeitos políticos, apontavam a centralidade da
terra como espaço de vida, de produção e identidade sociocultural.
Essa unidade e força política levaram o
governo de João Goulart a incorporar a reforma agrária como parte de
suas reformas de base, contrariando os interesses das elites e
transformando-se num dos elementos que levou ao golpe de 1964. Os
governos golpistas perseguiram, torturaram, aprisionaram e assassinaram
lideranças, mas não destruíram o sonho, nem as lutas camponesas por um
pedaço de chão.
Após décadas de resistência e denuncias
da opressão, as mobilizações e lutas sociais criaram condições para a
retomada e ampliação da organização camponesa, fazendo emergir uma
diversidade de sujeitos e pautas. Junto com a luta pela reforma agrária,
a luta pela terra e por território vem afirmando sujeitos como sem
terra, quilombolas, indígenas, extrativistas, pescadores artesanais,
quebradeiras, comunidades tradicionais, agricultores familiares,
camponeses, trabalhadores e trabalhadoras rurais e demais povos do
campo, das águas e das florestas. Neste processo de constituição de
sujeitos políticos, afirmam-se as mulheres e a juventude na luta contra a
cultura patriarcal, pela visibilidade e igualdade de direitos e
dignidade no campo.
Em nova demonstração de capacidade de
articulação e unidade política, nós homens e mulheres de todas as
idades, nos reunimos 51 anos depois, em Brasília, no Encontro Nacional
Unitário de Trabalhadores e Trabalhadoras, Povos do Campo, das Águas e
das Florestas, tendo como centralidade a luta de classes em torno da
terra, atualmente expressa na luta por Reforma Agrária, Terra,
Território e Dignidade.
Nós estamos construindo a unidade em
resposta aos desafios da desigualdade na distribuição da terra. Como nos
anos 60, esta desigualdade se mantém inalterada, havendo um
aprofundamento dos riscos econômicos, sociais, culturais e ambientais,
em conseqüência da especialização primária da economia.
A primeira década do Século XXI revela
um projeto de remontagem da modernização conservadora da agricultura,
iniciada pelos militares, interrompida nos anos noventa e retomada como
projeto de expansão primária para o setor externo nos últimos doze anos,
sob a denominação de agronegócio, que se configura como nosso inimigo
comum.
Este projeto, na sua essência, produz
desigualdades nas relações fundiárias e sociais no meio rural, aprofunda
a dependência externa e realiza uma exploração ultrapredatória da
natureza. Seus protagonistas são o capital financeiro, as grandes
cadeias de produção e comercialização de commodities de escala mundial, o
latifúndio e o Estado brasileiro nas suas funções financiadora –
inclusive destinando recursos públicos para grandes projetos e obras de
infraestrutura – e (des)reguladora da terra.
O projeto capitalista em curso no Brasil
persegue a acumulação de capital especializado no setor primário,
promovendo super-exploração agropecuária, hidroelétrica, mineral e
petroleira. Esta super-exploração, em nome da necessidade de equilibrar
as transações externas, serve aos interesses e domínio do capital
estrangeiro no campo através das transnacionais do agro e hidronegócio.
Este projeto provoca o esmagamento e a
desterritorialização dos trabalhadores e trabalhadoras dos povos do
campo, das águas e das florestas. Suas conseqüências sociais e
ambientais são a não realização da reforma agrária, a não demarcação e
reconhecimento de territórios indígenas e quilombolas, o aumento da
violência, a violação dos territórios dos pescadores e povos da
floresta, a fragilização da agricultura familiar e camponesa, a sujeição
dos trabalhadores e consumidores a alimentos contaminados e ao convívio
com a degradação ambiental. Há ainda conseqüências socioculturais como a
masculinização e o envelhecimento do campo pela ausência de
oportunidades para a juventude e as mulheres, resultando na não
reprodução social do campesinato.
Estas conseqüências foram agravadas pela
ausência, falta de adequação ou caráter assistencialista e emergencial
das políticas públicas. Estas políticas contribuíram para o processo de
desigualdade social entre o campo e a cidade, o esvaziamento do meio
rural e o aumento da vulnerabilidade dos sujeitos do campo, das águas e
das florestas. Em vez de promover a igualdade e a dignidade, as
políticas e ações do Estado, muitas vezes, retiram direitos e promovem a
violência no campo.
Mesmo gerando conflitos e sendo inimigo
dos povos, o Estado brasileiro nas suas esferas do Executivo, Judiciário
e Legislativo, historicamente vem investindo no fortalecimento do
modelo de desenvolvimento concentrador, excludente e degradador. Apesar
de todos os problemas gerados, os sucessivos governos – inclusive o
atual – mantêm a opção pelo agro e hidronegócio.
O Brasil, como um país rico em terra,
água, bens naturais e biodiversidade, atrai o capital especulativo e
agroexportador, acirrando os impactos negativos sobre os territórios e
populações indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e
camponesas. Externamente, o Brasil vem se tornando alavanca do projeto
neocolonizador, expandindo este modelo para outros países, especialmente
na América Latina e África.
Torna-se indispensável um projeto de
vida e trabalho para a produção de alimentos saudáveis em escala
suficiente para atender as necessidades da sociedade, que respeite a
natureza e gere dignidade no campo. Ao mesmo tempo, o resgate e
fortalecimento dos campesinatos, a defesa e recuperação das suas
culturas e saberes se faz necessário para projetos alternativos de
desenvolvimento e sociedade.
Diante disto, afirmamos:
1) a reforma agrária como política
essencial de desenvolvimento justo, popular, solidário e sustentável,
pressupondo mudança na estrutura fundiária, democratização do acesso à
terra, respeito aos territórios e garantia da reprodução social dos
povos do campo, das águas e das florestas.
2) a soberania territorial, que
compreende o poder e a autonomia dos povos em proteger e defender
livremente os bens comuns e o espaço social e de luta que ocupam e
estabelecem suas relações e modos de vida, desenvolvendo diferentes
culturas e formas de produção e reprodução, que marcam e dão
identidade ao território.
3) a soberania alimentar como o direito
dos povos a definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis
de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à
alimentação adequada a toda a população, respeitando suas culturas e a
diversidade dos jeitos de produzir, comercializar e gerir estes
processos.
4) a agroecologia como base para a
sustentabilidade e organização social e produtiva da agricultura
familiar e camponesa, em oposição ao modelo do agronegócio. A
agroecologia é um modo de produzir e se relacionar na agricultura, que
preserva a biodiversidade, os ecossistemas e o patrimônio genético, que
produz alimentos saudáveis, livre de transgênicos e agrotóxicos, que
valoriza saberes e culturas dos povos do campo, das águas e das
florestas e defende a vida.
5) a centralidade da agricultura
familiar e camponesa e de formas tradicionais de produção e o seu
fortalecimento por meio de políticas públicas estruturantes, como
fomento e crédito subsidiado e adequado as realidades; assistência
técnica baseada nos princípios agroecológicos; pesquisa que reconheça e
incorpore os saberes tradicionais; formação, especialmente da juventude;
incentivo à cooperação, agroindustrialização e comercialização.
6) a necessidade de relações
igualitárias, de reconhecimento e respeito mútuo, especialmente em
relação às mulheres, superando a divisão sexual do trabalho e o poder
patriarcal e combatendo todos os tipos de violência.
7) a soberania energética como um
direito dos povos, o que demanda o controle social sobre as fontes,
produção e distribuição de energia, alterando o atual modelo energético
brasileiro.
8) a educação do campo, indígena e
quilombola como ferramentas estratégicas para a emancipação dos
sujeitos, que surgem das experiências de luta pelo direito à educação e
por um projeto político-pedagógico vinculado aos interesses da classe
trabalhadora. Elas se contrapõem à educação rural, que tem como
objetivo auxiliar um projeto de agricultura e sociedade subordinada aos
interesses do capital, que submete a educação escolar à preparação de
mão-de-obra minimamente qualificada e barata e que escraviza
trabalhadores e trabalhadoras no sistema de produção de monocultura.
9) a necessidade de democratização dos
meios de comunicação, hoje concentrados em poucas famílias e a serviço
do projeto capitalista concentrador, que criminalizam os movimentos e
organizações sociais do campo, das águas e das florestas.
10) a necessidade do reconhecimento
pelo Estado dos direitos das populações atingidas por grandes projetos,
assegurando a consulta livre, prévia e informada e a reparação nos casos
de violação de direitos.
Nos comprometemos:
1- a fortalecer as organizações sociais
e a intensificar o processo de unidade entre os trabalhadores e
trabalhadoras, povos do campo, das águas e das florestas, colocando como
centro a luta de classes e o enfrentamento ao inimigo comum, o capital
e sua expressão atual no campo, o agro e hidronegócio.
2- a ampliar a unidade nos próximos
períodos, construindo pautas comuns e processos unitários de luta pela
realização da reforma agrária, pela reconhecimento, titulação,
demarcação e desintrusão das terras indígena, dos territórios
quilombolas e de comunidades tradicionais, garantindo direitos
territoriais, dignidade e autonomia.
3- a fortalecer a luta pela reforma
agrária como bandeira unitária dos trabalhadores e trabalhadoras e
povos do campo, das águas e das florestas.
4- a construir e fortalecer alianças
entre sujeitos do campo e da cidade, em nível nacional e internacional,
em estratégias de classe contra o capital e em defesa de uma sociedade
justa, igualitária, solidária e sustentável.
5- a lutar pela transição
agroecológica massiva, contra os agrotóxicos, pela produção de alimentos
saudáveis, pela soberania alimentar, em defesa da biodiversidade e das
sementes.
6- a construir uma agenda comum para
rediscutir os critérios de construção, acesso, abrangência, caráter e
controle social sobre as políticas públicas, a exemplo do PRONAF, PNAE,
PAA, PRONERA, PRONACAMPO, pesquisa e extensão, dentre outras, voltadas
para os povos do campo, das águas e das florestas.
7- a fortalecer a luta das mulheres por direitos, pela igualdade e pelo fim da violência.
8- a ampliar o reconhecimento da
importância estratégica da juventude na dinâmica do desenvolvimento e na
reprodução social dos povos do campo, das águas e das florestas.
9- a lutar por mudanças no atual modelo de produção pautado nos petro-dependentes, de alto consumo energético.
10- a combater e denunciar a violência e
a impunidade no campo e a criminalização das lideranças e movimentos
sociais, promovidas pelos agentes públicos e privados.
11- a lutar pelo reconhecimento da
responsabilidade do Estado sobre a morte e desaparecimento forçado de
camponeses, bem como os direitos de reparação aos seus familiares, com a
criação de uma comissão camponesa pela anistia, memória, verdade e
justiça para incidir nos trabalhos da Comissão Especial sobre mortos e
desaparecidos políticos, visando a inclusão de todos afetados pela
repressão.
Nós, trabalhadores e trabalhadoras,
povos do campo, das águas e das florestas exigimos o redirecionamento
das políticas e ações do Estado brasileiro, pois o campo não suporta
mais. Seguiremos em marcha, mobilizados em unidade e luta e, no combate
ao nosso inimigo comum, construiremos um País e uma sociedade justa,
solidária e sustentável.
Brasília, 22 de agosto de 2012.
Associação das Casas Familiares Rurais (ARCAFAR)
Associação das Mulheres do Brasil (AMB)
Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA)
Associação Brasileira dos Estudantes de Engenharia Florestal (ABEEF)
Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)
Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB)
Conselho Indigenista Missionário (CIMI)
CARITAS Brasileira
Coordenação Nacional dos Quilombolas (CONAQ)
Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG)
Comissão Pastoral da Pesca (CPP)
Comissão Pastoral da Terra (CPT)
Central dos Trabalhadores do Brasil (CTB)
Central Única dos Trabalhadores (CUT)
Federação dos Estudantes de Agronomia do Brasil (FEAB)
Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (FETRAF)
FASE
Greenpeace
INESC
Marcha Mundial das Mulheres (MMM)
Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
Movimento Camponês Popular (MCP)
Movimento das Mulheres Camponesas (MMC)
Movimento das Mulheres Trabalhadoras Rurais do Nordeste (MMTR-NE)
Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA)
Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais (MPP)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
Movimento Interestadual das Mulheres Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB)
Oxfam Brasil
Pastoral da Juventude Rural (PJR)
Plataforma Dhesca
Rede Cefas
Sindicato Nacional dos Trabalhadores em Pesquisa e Desenvolvimento Agropecuário (SINPAF)
SINPRO DF
Terra de Direitos
Unicafes
VIA CAMPESINA BRASIL
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