Os nômades de Belo Monte
A história dos migrantes atraídos pela terceira maior hidrelétrica do mundo. E o drama dos moradores que deixam o sossego de suas casas para dar lugar aos canteiros de obras da usina
Aline Ribeiro (texto) e Filipe Redondo (fotos), de Altamira
OS SEM-PALAFITA
O garoto Rafael em frente ao quarto alugado onde mora com a família. Com a obra, o local vai ficar embaixo d’água
O garoto Rafael em frente ao quarto alugado onde mora com a família. Com a obra, o local vai ficar embaixo d’água
DIVERSÃO GARANTIDA
À esquerda, o empresário Adão Rodrigues com a família em sua nova casa em Altamira. À direita, a prostituta M. durante um striptease na Boate da Noite. Eles migraram para o Pará com um objetivo comum: ganhar dinheiro com a chegada dos homens atraídos pela usina de Belo Monte
À esquerda, o empresário Adão Rodrigues com a família em sua nova casa em Altamira. À direita, a prostituta M. durante um striptease na Boate da Noite. Eles migraram para o Pará com um objetivo comum: ganhar dinheiro com a chegada dos homens atraídos pela usina de Belo Monte
O município, com uma população estimada em 100 mil pessoas, já recebeu 20 mil desde o anúncio da obra. A revolução em Altamira está só começando. No pico da construção, previsto para 2013, em torno de 19 mil barrageiros serão contratados. Com eles, chegarão mais famílias, comerciantes, potenciais funcionários de empresas periféricas que servem a obra. À rodoviária ou aos aeroportos, homens e mulheres chegam – inclusive de outros países – à procura de emprego. Dezenas de trabalhadores viajam diariamente para a região de Altamira em busca de oportunidades – frequentemente ilusórias. Segundo estimativas, a cidade pode ganhar mais 80 mil habitantes no auge da obra. O fluxo lembra outros fenômenos amazônicos, como a corrida do ouro, que nos anos 1980 chegou a atrair 100 mil garimpeiros para Serra Pelada, deixando um rastro de destruição, violência e pobreza. Agora, a 610 quilômetros ao norte, em Altamira, uma nova invasão se anuncia. E, apesar dos anos de planejamento de Belo Monte, a região não parece preparada para recebê-la.
Rodrigues e a família aportaram há três meses em Altamira, depois de 1.800 quilômetros de terra pela Transamazônica, 158 pontes de madeira enjambradas (contadas pela mulher, Solide Fatima Triques) e um pedágio pago a um líder indígena. Aos deslocamentos populacionais puxados pelas obras de engenharia, os responsáveis pelo lazer chegam primeiro. Rodrigues tem um currículo robusto no que diz respeito a entreter os trabalhadores das barragens, os chamados barrageiros. Começou operando máquinas no canteiro de obras, mas logo descobriu que a atividade paralela dava mais dinheiro. Agora, faz casas noturnas perto das usinas. Ele diz que já fez as malas pelo menos 14 vezes no decorrer de seus 50 anos, atrás das hidrelétricas. “Não tenho apego a bens, encaro tudo como uma aventura”, diz. Em sua última viagem, deixou seu cabaré ao lado da hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, para tocar um negócio mais promissor em Belo Monte. É o mesmo roteiro seguido agora por seus clientes. Rodrigues pretende abrir outros dois prostíbulos e dois hotéis ao lado da usina. “Vamos ganhar dinheiro com esta obra por pelo menos dez anos”, afirma.
DE PAI PARA FILHO
O barrageiro Divino Junior em Altamira. Ele e sete irmãos seguiram o ofício do pai: construir as grandes obras
O barrageiro Divino Junior em Altamira. Ele e sete irmãos seguiram o ofício do pai: construir as grandes obras
Existem dinastias especializadas em seguir as grandes obras. Como a do barrageiro Divino Junior, de 31 anos. Ele tem 16 anos de experiência em carteira na construção de hidrelétricas. Diz que seu pai sempre trabalhou construindo usinas e passou o ofício para oito dos dez filhos, inclusive as mulheres. “Filho de barrageiro é criado no mundo”, afirma Junior. “Cada um de meus irmãos está em um Estado diferente. A gente só reúne a família quando coincide de trabalhar num mesmo lugar.” Junior chegou a Altamira junto com dois amigos barrageiros no começo de março. Deixou um salário bruto de R$ 9 mil na hidrelétrica de Jirau, em Rondônia, e seguiu de carro pela Transamazônica numa viagem de quatro dias. A troca faz sentido no longo prazo: a obra de Jirau deverá acabar em 2016, a de Belo Monte vai durar até 2019. Mas Junior ainda não foi contratado. Das 11 barragens que já ajudou a erguer, guarda as lições do submundo das usinas. “Dentro dos alojamentos, você tem de ver e fingir que é cego. Ouvir e fingir que é surdo”, diz. Junior conta que em Jirau, divisa com a Bolívia, toda semana um ou outro trabalhador vai até o país vizinho para comprar ilegalmente a “ponta 40”, uma pistola de uso militar. Muitos dos contratados pelas empreiteiras são ex-presidiários. É um incentivo à reinserção na sociedade. Porém, parte deles acaba em atividades ilícitas, principalmente no tráfico de drogas. “Eu era chefe de um ex-presidiário que traficava na obra. Quando quis demitir, ele me ameaçou de morte”, afirma. “Só nas hidrelétricas de Rondônia vi morrer uns 30.”
A experiência de Junior mostra as perspectivas econômicas trazidas pela obra. Mas também que elas não se concretizam se a região estiver despreparada para transformar os investimentos em melhorias permanentes. Os sinais em Altamira são preocupantes. A começar a recepção aos migrantes. Muitos deles, sem condições mínimas para se manter, vão parar em abrigos municipais. Outros se empoleiram em palafitas alugadas, sem água encanada ou esgoto. Altamira, hoje, não comporta os recém-chegados. Para conseguir um hotel, é preciso ligar com mais de uma semana de antecedência. Encontrar um pé de alface a um preço acessível é um golpe de sorte. “O município não está preparado para receber este empreendimento”, diz Odileida Sampaio, prefeita de Altamira pelo PSDB, enquanto arruma os bobes do cabelo. “Precisamos de desenvolvimento. Caso contrário, em dez anos as pessoas vão pegar suas malas e ir embora. Deixando só os impactos aqui.”
Se durante o dia Altamira tem o agito de um novo polo migratório, quando a noite chega ela é tomada por uma tensão velada, especialmente nos bairros mais pobres. Na madrugada, só gatos e cachorros perambulam pelas ruas. Há notícias de traficantes assassinados toda semana. O crack e o óxi (uma droga mais destruidora) se disseminam rapidamente. “De fevereiro para cá, quando as pessoas começaram de fato a chegar, a criminalidade dobrou”, afirma Cristiano do Nascimento, superintendente da Polícia Civil. Os reflexos na saúde s também já são sentidos. O número de internações e atendimentos em postos médicos aumentou. A solução seria preparar a cidade para o novo contingente. Mas há um descompasso entre a chegada de recursos para sanar os problemas socioambientais e o início do empreendimento. “Você só pode adquirir financiamento depois que todas as licenças ambientais saírem”, afirma Carlos Nascimento, presidente da Norte Energia, responsável pela obra. “Até outubro, quando deverá ser liberado o aporte maior do banco, vamos usar o dinheiro dos investidores para reduzir os impactos.”
MIGRAÇÃO FORÇADA
No sentido horário: enquanto as mulheres lavam roupa, um menino se refresca num afluente do Rio Xingu. O agricultor Antônio Sales, recém-indenizado pela usina, colhe o cacau. Tem medo de ser assaltado. E Maria Terezinha com a família durante uma pausa na limpeza do terreno recém-invadido. Todos eles deixarão suas casas para dar lugar à hidrelétrica
No sentido horário: enquanto as mulheres lavam roupa, um menino se refresca num afluente do Rio Xingu. O agricultor Antônio Sales, recém-indenizado pela usina, colhe o cacau. Tem medo de ser assaltado. E Maria Terezinha com a família durante uma pausa na limpeza do terreno recém-invadido. Todos eles deixarão suas casas para dar lugar à hidrelétrica
OS SEM-RIO
O agricultor José Alves navega com sua canoa a gás. Ele mora na Volta Grande do Xingu, um trecho do rio que pode secar
O agricultor José Alves navega com sua canoa a gás. Ele mora na Volta Grande do Xingu, um trecho do rio que pode secar
Grandes obras como a usina Belo Monte são propulsoras de um movimento constante de vidas. Há os que chegam e os que saem. Outros não sabem se vão ou se ficam. É assim com o agricultor José Alves, de 59 anos, dono de um sítio em um trecho do rio chamado Volta Grande do Xingu. Como a obra vai desviar o curso natural do Xingu, cerca de 100 quilômetros do rio na Volta Grande terão redução drástica no volume de água. Os cientistas têm dúvidas de que será possível navegar naquele pedaço – o que mudaria a rotina dos milhares de pessoas, inclusive duas etnias indígenas. A empresa só considera afetadas pela construção as áreas alagadas do entorno. As regiões secas serão secundárias na redução de impactos. Alves se mantém na condição estática não somente por desconhecer se poderá percorrer o Xingu com seu barquinho. Mas também pela indefinição sobre sua moradia. Até agora, a Norte Energia não decidiu o que fazer com ele e os vizinhos. E Alves ainda não sabe se será, ou não, mais um migrante da usina de Belo Monte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário