Raça é racismo, preconceito é elitismo e a violência é contra todos
”A única obscenidade que conheço é a violência”.
(Jim Morrison – 1943/1971).
Todos nós sabemos que o Brasil é um País injusto, com enorme
concentração de renda, de terras e com uma história cruel de exclusão
social, no que concerne ao acesso da população brasileira ao ensino, à
saúde, à moradia, à terra e ao emprego.
Essa situação se eterniza no nosso País porque não convêm às classes
dominantes, que controlam as áreas econômicas, políticas, acadêmicas,
científicas, além dos setores ligados à segurança do estado nacional,
democratizar e distribuir as riquezas e o conhecimento que as
instituições privadas e estatais adquiriram através do tempo, em 511
anos de história desse País.
O Atlas elaborado em 2003 pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (Pnud) denuncia e aponta mazelas sociais e econômicas
graves que oprimem e retiram o direito à cidadania plena da população
brasileira formada por cidadãos negros e pardos. É lamentável e
vergonhoso que pequena parte da sociedade brasileira, que controla os
sistemas de produção, financeiro e principalmente de comunicação, além
de milhões de hectares de terras, não tenha chegado à conclusão que
enquanto houver exclusão social e econômica a ditar a rotina de vida dos
brasileiros haverá sempre espaço para a perpetuação da miséria, da
ignorância, da prostituição, do tráfico de drogas e de armas, da
violência e da banalização de homicídios.
Não é possível também que os estados brasileiros, por intermédio de
seus governos, não efetivem, com a celeridade necessária, políticas
públicas que ajudem a conter, com urgência, o momento caótico, de
degradação moral, pelo qual passa a sociedade brasileira, que, refém da
criminalidade e ainda da miséria, não sabe a quem recorrer e nem a quem
pedir proteção, porque no Brasil a Justiça tarda e falha.
A taxa de homicídios no Brasil, no período de 1992 a 2007, cresceu 32%
em 15 anos, conforme pesquisa IDS 2010 (Indicadores de Desenvolvimento
Sustentável) divulgada pelo IBGE. Em 2007, de acordo com o IDS, a média
foi de 25,4 mortes para cada 100 mil habitantes, enquanto em 1992 o
índice ficou em 19,2 mortes. No ano de ano de 2008, a média foi similar.
O estudo indica ainda que cerca de 47 mil pessoas foram assassinadas no
Brasil. A grande maioria das vítimas era negra. Os Estados Unidos,
durante 13 anos de guerra no Vietnã, perderam 54 mil soldados. Portanto,
temos em nosso território uma guerra muito mais cruel e sanguinária,
verdadeira guerrilha urbana e rural, despida de ideologias, mas
solidificada no desejo de consumo e na vontade de auferir lucro e
vantagem, mesmo se o lucro for de natureza ilegal.
Nós vivemos a apologia “do ter” e não “do ser”. O mercado, a
publicidade, a propaganda e o marketing apregoam que o cidadão somente
será aceito ou terá sucesso se ele comprar, usar, beber ou comer os
produtos por eles inventados e fabricados e vendidos nos balcões de
negócios em que se transformaram os meios de comunicação — porta-vozes
do sistema de mercado massificado.
É a ditadura da futilidade, da leviandade, do engano e da mentira. É a
indústria do que é, efetivamente, descartável, porém, com o tempo, cara
para sociedade, que “entra de cabeça” nesse engodo, por não se preocupar
com as coisas que realmente edificam o desenvolvimento humano, que é a
cultura, o ensino escolar de base e universitário, a saúde e o acesso
universal aos serviços públicos, de preferência de boa qualidade. O
restante vem depois, sempre vem, quando uma civilização se torna mais
homogênea, quando as diferentes classes sociais diminuem as
desigualdades, as contradições e os antagonismos.
Os nossos garotos se matam entre si, enfrentam a polícia e quem mais
tiver de enfrentar para ter status, namoradas, o tênis da moda, o carro
“oferecido” pela publicidade, a bebida do sucesso, além das roupas e
cosméticos que os meios de comunicação garantem que são o máximo. A
questão é de auto-afirmação em relação à comunidade em que vivem, bem
como a quase total ausência de valores morais, familiares, educacionais e
religiosos.
Vazios de princípios pétreos, como trabalhar, estudar, respeitar o
semelhante, ser cidadãos honestos e lúcidos e dignos entre seus
contemporâneos, muitos de nossos garotos preferem transitar por veredas
tortuosas, sendo que a maioria delas não leva a lugar algum — a não ser
ao abandono social e familiar, cujo destino é a cadeia, se tiver a sorte
de não parar no cemitério.
Entretanto, faço uma ressalva: a enorme parcela dos garotos que são
acusados e processados pelo estado de transgredir as leis, as regras e
cometer crimes de modalidades diversas têm origem humilde, são filhos de
famílias carentes, e, por ser pobres, geralmente são indivíduos de
etnia negra ou parda.
Essa realidade existe porque a maioria dos criminosos brancos não usa
armas para roubar ou matar. Os criminosos brancos têm como armas a
caneta, a força política e econômica, o poder de influência na Justiça,
no Legislativo, no Executivo e na polícia — em todas as polícias. O
criminoso branco geralmente estudou e tem bons e caros advogados, que
são pagos, regiamente e fartamente, com o dinheiro cuja origem é a
corrupção estatal associada à iniciativa privada, além do roubo de
mercadorias, da manipulação da gasolina e do álcool, das licitações
fraudulentas, do roubo de carros e caminhões e, como não poderia deixar
de ser, tal qual acontece com os negros das favelas, do tráfico de
drogas e armas.
Neste último caso, o criminoso branco não troca tiros com grupos rivais
ou com a polícia, porque ele somente atua no atacado. O varejo fica
para os negros, que defendem seus territórios por meio do enfrentamento à
bala. O criminoso branco não se expõe, porque tem recursos e meios para
isso. As palavras até agora escritas me levam a afirmar que a
violência, o racismo e a pobreza são irmãos siameses. São unidos
umbilicalmente. Um é resultado de outro; é conseqüência. E sempre foi
assim, desde o início da humanidade. Por isso, que a criminalidade tem
de ser combatida, por intermédio também da repressão do estado, mas,
principalmente, por meio da melhoria das condições de vida das pessoas
que vivem à margem da sociedade e abaixo da linha de pobreza.
Repressão, por si só, não acaba com a miséria material e com a
miserabilidade humana. Criminoso tem de ser preso, seja ele rico ou
pobre, mas os políticos, os economistas, os sociólogos, os professores,
os jornalistas e os administradores, se forem sensatos e inteligentes,
saberão compreender que a miséria é a mãe do crime e da degeneração
social e moral.
O estado pode prender cem, mil; prende-se um milhão de pessoas, mas é
imperativo realizar a distribuição de renda e de terras. Equacionar os
impostos, criar empregos, diminuir os tributos e exigir um novo
reescalonamento das dívidas públicas, principalmente a interna, porque a
externa atualmente é praticamente da iniciativa privada e ela que arque
com suas responsabilidades. E o estado nacional que a deixe arcar,
porque os empresários apoiaram o neoliberalismo e portanto, que paguem
por seu erro.
O contribuinte tem de exigir serviços públicos de boa qualidade do
estado e o estado tem a obrigação de atender as pessoas que dele
necessitam, e, obviamente, os empresários não fazem parte desse grupo
que depende da atenção do estado. Além do mais, o grande empresariado
admira e prega a frase “quem não tem competência não se estabelece”.
Então que ele faça jus ao slogan e não procure o estado quando
fracassar, atitude que todos nós sabemos que nunca acontece, como
ocorreu na Europa e nos EUA, a partir da crise iniciada em 2008, quando
os estados nacionais tiveram de socorrer a incompetência e a
irresponsabilidade dos empresários, e a falta de regras regulatórias
para fiscalizar e punir os diversos mercados, além de cobrar a
leviandade da imprensa privada (privada nos dois sentidos, tá?) e de
seus “especialistas” de prateleira, que caíram com seus burros n’água,
por causa do derretimento do neoliberalismo, que eles defenderam até se
afogar na própria irreflexão, insensatez e má-fé.
Para isso, o Governo precisa ter coragem, disposição e, por intermédio
desse processo, levantar recursos para combater a criminalidade, a
ignorância e a miséria. Isso pode ser feito e está a ser realizado. Só
não vê quem não quer, talvez por ideologia, preconceitos ou simplesmente
ignorância. Ou talvez estivesse em um processo de coma durante dez anos
e depois acordou e por isso não percebe as mudanças que aconteceram na
última década no Brasil. Uma verdadeira revolução, que ocorreu sem
repressão aos movimentos sociais e às instituições e entidades públicas e
privadas.
Sem repressão contra o povo brasileiro. Porque os números econômicos e
financeiros e sociais estão aí, para quem quiser ver, analisar e
estudar. Instituições e órgãos como IBGE, BC, Receita, Fazenda, Tesouro,
BB, CEF, Sudene, Sudam, BNDES, PNUd e Unicef estão abertos para quem
quiser pesquisar os números econômicos e os índices sociais do Brasil e
de seu povo. Compete a quem duvida ir atrás desses números.
Muitos dizem que as coisas são complexas e demandam tempo e dinheiro.
Mas quem afirma esse tipo de coisa, esse despropósito, é porque não quer
mudanças. Na verdade, quer manter os privilégios, ou até mesmo, por
ignorância ou conservadorismo, não consegue compreender, com precisão, o
que está a acontecer no Brasil — a sétima maior economia do mundo,
aceite ou não a direita partidária urbana e rural e a imprensa comercial
e privada (privada nos dois sentidos, tá?).
Todavia, sei de uma coisa: apesar de reconhecer, e muito, que o Brasil
avançou espetacularmente no Governo Lula, permanece ainda no fundo do
meu coração o sentimento de que o País ainda não é confiável para as
gerações vindouras, que poderão (a gente nunca sabe) ficar igualmente
expostas ao que a minha geração, infelizmente, está cansada de ver:
violência, pobreza, impunidade e os 10% mais ricos do País a concentrar
75,4% da riqueza produzida pelos brasileiros, conforme pesquisa do Ipea
de 2010.
Caro leitor, o Produto Interno Bruto (PIB) mostra as riquezas do País,
enquanto o Índice de Desenvolvimento Econômico (IDH) mostra a pobreza.
Evidentemente, o IDH é o índice que deveria pautar e dar direcionamento
de pensamento aos nossos economistas e administradores, governantes e
empresários e meios de comunicação, para que pudéssemos desenvolver e
pensar o Brasil, e, conseqüentemente, melhorar as condições de vida do
povo brasileiro, se o capital e os mercados, repetidamente, com a
cumplicidade de governos, principalmente os de perfis neoliberais, que
foram derrotados nas urnas na América Latina, não dessem prioridade às
demandas e aos privilégios dos ricos que controlam a macroeconomia.
Observemos o que está a acontecer na Europa, no Japão e nos EUA. É o
mundo real. É a face dura das sociedades quando falta salário e emprego.
Os conflitos se multiplicam, porque “quando falta pão todo mundo grita,
mas ninguém tem razão”. Principalmente os governos que se aliaram aos
empresários e faliram seus países, e depois querem resolver os problemas
com repressão policial.
Besta é o policial que entra nessa, porque ele faz parte da classe
trabalhadora. É bom lembrar. Por isso, não dá, não é de boa monta
acreditar, por exemplo, na Globo News e em suas co-irmãs, bem como nos
“especialistas” de prateleira, que defendem o indefensável; justificam o
injustificável e pregam o que não é mais ouvido — escutado.
Contudo, e com a realidade a nos dar quase todo o dia um soco no
estômago ou um tapa na cara, à escolha, o sistema prefere manter os
privilégios das classes abastadas, com o apoio da classe média
universitária, conservadora, porém despolitizada, mas empregada nas
empresas dos que controlam os meios de produção e os poderes
constituídos. “Distribuir riqueza e renda, nunca!” É assim que pensam
partidos como o PSDB e o DEM e certas entidades empresariais.
É dessa forma que agem os colunistas, editorialistas e comentaristas
brancos e de classe média alta da imprensa corrupta e manipuladora
quando não mentirosa. O preço é alto, porque os filhos dos ricos também
terão uma vida de privações, pois ficarão exilados, desterrados em seus
condomínios e enjaulados dentro de suas casas, como já acontece nos
bairros de classes A e B das grandes e médias cidades.
Viveremos em um País, se não dermos continuidade à distribuição de
renda e de riqueza, além de continuarmos a efetivar a ampliação dos
programas sociais, em que a liberdade de ir e vir será apenas um artigo
da Constituição da República Federativa do Brasil. A questão da
violência, da pobreza e do racismo está intrinsecamente ligada aos 350
anos de escravidão e à concentração de renda e de terras.
Para complementar o que foi dito até agora, necessário se faz salientar
que o relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o
Desenvolvimento (Pnud) mostra que de 1982 a 2003 a proporção de negros
entre os pobres e indigentes do Brasil praticamente não teve alteração.
Observe-se que, 21 anos depois, as elites brasileiras, herdeiras dos
senhores de escravos, não cumpriram com suas responsabilidades e
obrigações, mesmo após a redemocratização do País.
Como em 1982, o percentual de negros em 2003 entre os pobres se manteve
em 65% e entre os indigentes o percentual se manteve em 70%. Para o
demógrafo Eduardo Rios Neto, do Centro de Desenvolvimento e Planejamento
Regional (Cedeplar) da UFMG, um dos autores do Atlas do Pnud, a raça é a
dimensão estrutural da pobreza e da indigência e por isso é a questão
mais difícil de solucionar.
O demógrafo disse ainda que mesmo quando houve planos que distribuíram
alguma renda, como o Plano Cruzado de 1986, a situação social e
econômica da população negra não melhorou. Rios Neto afirmou na época
que a pobreza não é exclusiva dos negros, mas aparece em suas vidas com
maior intensidade.
O Atlas informa que brancos e negros de mesma escolaridade não recebem
salários iguais. A renda dos negros é menor, uma prova inquestionável de
que a discriminação racial explica e reflete as desigualdades no nosso
País. A desigualdade, entre cidadãos brasileiros, retrata,
cristalinamente, o racismo nas relações de trabalho no Brasil e, por
conseguinte, em todas as relações sociais.
O racismo aprofunda as desigualdades e a sociedade brasileira o
institucionalizou, bem como o estado, no decorrer dos séculos. Outro
fator que colaborou para a situação da população negra não ser
condizente com sua importância como trabalhadora e por isso geradora de
riquezas é sua condição de escrava no passado.
Por quase 350 anos a economia teve como base a escravidão, de forma
oficial, o que prejudicou, sobremaneira, os descendentes de
afro-brasileiros, que, como seus antepassados, não tiveram acesso a
terra e por isso tiveram de ocupar os morros e as periferias, onde hoje
acontece toda modalidade de crime, apesar de programas vencedores como o
que implantou as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Rio de
Janeiro e do aumento dos recursos oriundos do Governo Federal, com o
apoio logístico e de pessoal dos governadores dos estados federados para
reprimir e combater a criminalidade, com o auxílio importante da oferta
de serviços públicos, de implantação de infraestrutura (pavimentação e
esgotamento sanitário) e de ampliação dos benefícios sociais,
exemplificados no Bolsa Família, no Bilhete Único e na construção de
casas, por intermédio do Minha Casa, Minha Vida, entre outros programas e
benefícios.
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| O ritual de queima da cruz foi o primeiro a ser realizado em público em 50 anos Foto: Reuters - 24/10/2010 |
Além do mais, os negros não tiveram acesso à saúde de boa qualidade, o
que faz com que essa importante parcela da sociedade brasileira tenha,
em média, cinco anos de vida a menos que a parcela branca. Quanto à
educação, o homem e a mulher negros estudam em média entre quatro a seis
anos a menos. Este é o nosso País, onde moram pessoas que mesmo a
conhecer realidades, índices e números preferem ficar presas em
condomínios e carros blindados do que apoiar a desconcentração de renda e
a distribuição de terras, bem como propiciar a divisão das riquezas
produzidas pelos trabalhadores, brancos e negros e de todas as origens
étnicas, porque o Brasil é um País de imigrantes e de índios. Todo
cidadão brasileiro tem direito a viver em paz e em segurança.
A questão da erradicação da pobreza ou da miséria é tão importante
quanto à inserção, à inclusão dos negros brasileiros na sociedade. A
maioria dos pobres é negra. Não se pode esquecer essa indubitável
realidade. Até porque, como bem sabemos, existe somente uma espécie: a
espécie humana. Definição de raça é racismo. Preconceito é elitismo. E a
violência é contra todos. É isso aí.








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